quarta-feira, 22 de agosto de 2012

GILBERTO FREYRE (1900-1987)


Sociólogo, antropólogo e escritor, Gilberto de Mello Freyre nasceu no Recife, Pernambuco, no dia 15 de março de 1900, na antiga Estrada dos Aflitos (atual Avenida Rosa e Silva), filho do professor e juiz de direito Alfredo Freyre e de Francisca de Mello Freyre. Estudou o primário e o secundário no Colégio Americano Gilreath, no Recife (1908-1917), onde participou ativamente da sua sociedade literária, sendo redator-chefe do jornal O Lábaro, editado por aquela instituição de ensino. Em 1918, viajou para os Estados Unidos, onde fez seus estudos universitários: bacharelado em Artes Liberais, com especialização em Ciências Políticas e Sociais, na Universidade de Baylor e mestrado e doutorado em Ciências Políticas, Jurídicas e Sociais, na Universidade de Columbia, onde defendeu a tese Vida social no Brasil em meados do século XIX. Viajou para vários países europeus, retornando ao Brasil, em 1923, preferindo continuar morando na sua terra natal, o Recife, em vez de ir para o sul do País. Considerado um pioneiro da Sociologia no Brasil, foi um dos idealizadores do I Congresso Brasileiro de Regionalismo, do qual resultou a publicação Manifesto regionalista de 1926, contrário à Semana de Arte Moderna de 1922 e valorizando o regionalismo nordestino em confronto com as manifestações da "cultura européia". De 1927 a 1930, foi chefe de gabinete do então governador de Pernambuco, Estácio Coimbra. Em 1933, publicou seu livro mais conhecido Casa-grande & senzala, que iria depois ser publicado por vários países como Argentina (1942); Estados Unidos (1946); França (1952); Portugal (1957); Alemanha e Itália (1965); Venezuela (1977); Hungria e Polônia (1985), entre outros. Foi eleito deputado federal constituinte, em 1946. Quando deputado, foi autor do projeto que criou o Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, hoje Fundação Joaquim Nabuco. Além de escritor, foi também pintor e jornalista. Dirigiu os jornais recifenses A Província e o Diario de Pernambuco. Colaborou com a revista O Cruzeiro (Rio de Janeiro) e vários periódicos estrangeiros. Foi membro do Conselho Federal de Cultura desde a sua criação, diretor do Centro Regional de Pesquisas Educacionais e presidente do conselho-diretor da Fundação Joaquim Nabuco. Recebeu vários prêmios literários e o título de Doutor Honoris Causa de diversas universidades brasileiras e estrangeiras. Da Rainha Elizabeth II, da Inglaterra, recebeu o título de Cavaleiro do Império Britânico. É autor de dezenas de livros, entre os quais, Casa-grande & senzala (1933), obra considerada fundamental para a compreensão da formação social brasileira; Sobrados e mucambos (1936); Nordeste (1937); O mundo que o português criou (1940); Ingleses no Brasil (1948); Aventura e rotina (1953); Ordem e progresso (1959); Vida, forma e cor (1962); Homem, cultura e trópico (1962); Oliveira Lima, Dom Quixote Gordo (1968); Além do apenas moderno (1973); Tempo de aprendiz (1979); Rurbanização: que é? (1982); Apipucos: que há num nome? (1983); Insurgências e ressurgências (1983); Modos de homem e modas de mulher (1987); Ferro e civilização no Brasil (1988). Morreu no Recife, no dia 18 de julho de 1987, sendo sepultado no Cemitério de Santo Amaro.





VENTOS DA TARDE


As mangueiras
o telhado velho
o pátio branco
as sombras da tarde cansada
até o fantasma da judia rica
tudo esta à espera do romance começado

um dia sobre os tijolos soltos
a cadeira de balanço será o principal ruído
as mangueiras
o telhado
o pátio
as sombras
o fantasma da moça
tudo ouvirá em silêncio o ruído pequeno.

***



JANGADA TRISTE

Ao longe, mui longe, no horizonte,
além, muito além daquele monte,
como ave que voa desdenhada,
flutua tristemente uma jangada.

Nos zangados soluços do oceano,
quase desaparece o canto humano
de quem no mar e céu inda confia
porque em terra tudo lhe é melancolia.

Isso de terra firme e mar traiçoeiro
 nem sempre é certo para o jangadeiro
mais preso ao fiel sal que à incerta areia.

Mistura ao grande azul as suas mágoas
e encontra no vaivém das verdes águas
consolo às negras dores cá da terra.


***


BAHIA DE TODOS OS SANTOS
E DE QUASE TODOS OS PECADOS
 

Bahia de Todos os Santos (e de quase todos os pecados)
casas trepadas umas por cima das outras
casas, sobrados, igrejas, como gente se espremendo pra sair num
retrato de revista ou jornal
(vaidade das vaidades! diz o Eclesiastes)
igrejas gordas (as de Pernambuco são mais magras
toda a Bahia é uma maternal cidade gorda
como se dos ventres empinados dos seus montes
dos quais saíram tantas cidades do Brasil
inda outras estivessem para sair
ar mole oleoso
cheiro de comida
cheiro de incenso
cheiro de mulata
bafos quentes de sacristias e cozinhas
panelas fervendo
temperos ardendo
o Santíssimo Sacramento se elevando
mulheres parindo
cheiro de alfazema
remédios contra sífilis
letreiros como este:
Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo
(Para sempre! Amém!)
automóveis a 30$ a hora
e um ford todo osso sobe qualquer ladeira
saltando pulando tilintando
para depois escorrer sobre o asfalto novo
que branqueja como dentadura postiça em terra encarnada
(a terra encarnada de 1500)
gente da Bahia! preta, parda, roxa, morena
cor dos bons jacarandás de engenho do Brasil
(madeira que cupim não rói)
sem rostos cor de fiambre
nem corpos cor de peru frio
Bahia de cores quentes, carnes morenas, gostos picantes
eu detesto teus oradores, teus otaviosmangabeiras
mas gosto das tuas iaiás, tuas mulatas, teus angus
tabuleiros, flor de papel, candeeirinhos,
tudo à sombra das tuas igrejas
todas cheias de anjinhos bochechudos
sãojoões sãojosés meninozinhosdeus
e com senhoras gordas se confessando a frades mais magros do que
eu
O padre reprimido que há em mim
se exalta diante de ti Bahia
e perdoa tuas superstições
teu comércio de medidas de Nossa Senhora e do Nossossenhores do
Bonfim
e vê no ventre dos teus montes e das tuas mulheres
conservadoras da fé uma vez entregue aos santos
multiplicadores de cidades cristãs e de criaturas de Deus
Bahia de Todos os Santos
Salvador
São Salvador
Bahia
Negras velhas da Bahia
vendendo mingau angu acarajé
Negras velhas de xale encarnado
peitos caídos
mães de mulatas mais belas dos Brasis
mulatas de gordo peito em bico como para dar de mamar a todos os
meninos do Brasil.
Mulatas de mãos quase de anjos
mãos agradando ioiôs
criando grandes sinhôs quase iguais aos do Império
penteando iaiás
dando cafuné nas sinhás
enfeitando tabuleiros cabelos santos anjos
lavando o chão de Nosso Senhor do Bonfim
pés dançando nus nas chinelas sem meia
cabeções enfeitados de rendas
estrelas marinhas de prata
tetéias de ouro
balangandãs
presentes de português
óleo de coco
azeite-de-dendê
Bahia
Salvador
São Salvador
Todos os Santos
Tomé de Sousa
Tomés de Sousa
padres, negros, caboclos
Mulatas quadrarunas octorunas
a Primeira Missa
os malês
índias nuas
vergonhas raspadas
candomblés santidades heresias sodomias
quase todos os pecados
ranger de camas-de-vento
corpos ardendo suando de gozo
Todos os Santos
missa das seis
comunhão
gênios de Sergipe
bacharéis de pince-nez
literatos que lêem Menotti del Picchi e Mário Pinto Serpa
mulatos de fala fina
muleques
capoeiras feiticeiras
chapéus-do-chile
Rua Chile
viva J. J. Seabra morra J. J. Seabra
Bahia
Salvador
São Salvador
Todos os Santos
um dia  voltarei com vagar ao teu seio moreno brasileiro
às tuas igrejas onde pregou Vieira moreno hoje cheias de frades
ruivos e bons
aos teus tabuleiros escancarados em x (esse x é o futuro do Brasil)
a tuas a teus sobrados cheirando a incenso comida alfazema
cacau.
 




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