quarta-feira, 27 de março de 2013

FREI ELIAS FERRO (1905-1971)

Frei Elias Medeiros Ferro nasceu em Palmeira dos Índios, em 15 de março de 1905. Filho de Isiano Ferreira Ferro e Maria Rosa Medeiros, não freqüentou a escola. Autodidata, auxiliar do comércio, trabalhou quatro anos na casa comercial do escritor Graciliano Ramos, seu parente. Em 1928, ingressou no Convento do Carmo, de Salvador-BA, onde fez o noviciado e a profissão religiosa, na ordem dos carmelitas. Sempre residiu no Convento, onde, com outros irmãos, fundou o Museu do Carmo. Passou seus últimos anos em Maceió, morrendo na capital alagoana. Entre suas principais obras, encontram-se: Flores do Outono (Bahia, 1956) – poesias; Tarde de Outono (Bahia, 1958) – poesias; Cânticos do Arrebol (Bahia, 1961) – poesias; Poesias Completas (Bahia, 1964) – poesias; Poesias Escolhidas (Bahia, 1968) – poesias, 2ª. Edição em 1971.






JESUS AÇOITADO



“Mandou Pilatos que Jesus fosse açoitado”,
Refere o Evangelista: o mais feroz tormento,
Que, para serenar o povo turbulento,
Ordenara o pretor, injusto e amedrontado.

O Cordeiro de Deus, sem revide ou lamento,
Entrega as santas mãos para ser amarrado
Ao alto da coluna e com o corpo força,
Aguarda, resignado, o horrendo sofrimento.

Vergastam-no com raiva e sádica alegria
— como soem fazer os asseclas do inferno,
As ordens de satã que os estimula e guia.

E a vítima divina, elevado o olhar terno
Ao céu, aceita a imensa e pungente agonia
E por nós a oferece a Deus — seu Pai Eterno.

***

CONTRASTE

Jaz na igreja, estendido em caixão precioso,
Um membro da nobreza... Em pranto estão rendidos
Os filhos seus, a viúva; e esta, a chamar o esposo,
Roga-lhe em alta voz que atenda os seus gemidos.

Os circunstantes, ante a cena, comovidos,
Põem-se a soluçar pelo amigo saudoso;
Uns, refletem, talvez, que também são maridos
E um dia a morte vem roubar-lhes todo do gozo.

Mais tarde um outro esquife é posto na capela...
— O silêncio domina o ambiente funéreo,
Em volta do plebeu, sobre  a tumba singela...

Daqui, o último sono ao descanso transfere-o,
Pois dormiu no Senhor, que os humanos nivela,
Quando a vida findar, no pó do cemitério.


***


D E U S


As nebulosas mil do imenso firmamento,
Os astros de esplendor e formas multifárias,
Os globos siderais - quais lindas luminárias
A povoar o céu de raro encantamento.

A extensa atmosfera, a luz, a chuva, o vento,
As nuvens que no azul se manifestam várias,
Os raios e trovões e as auroras diárias
Nos falam desse belo e adorável Portento,

Desse Deus Eternal que, entre tantos primores,
Pôs o mundo a girar nas enormes alturas,
Em derredor do sol que dá vida e fulgores,

Que criou nesta terra o oceano e as planuras,
O monte, a mata, o rio, os animais, as flores
E o homem, ao qual fez o rei das criaturas.

SÔNIA RANGEL (1948 - )

Sonia Lúcia Rangel nasceu no Rio de Janeiro. De 1964 a 1968 estuda na Escola Nacional de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como aluna do extinto curso de Arte Decorativa, tendo como professores Fernando Pamplona, Mário Barata, Quirino Campofiorito e Onofre Penteado, entre outros. Em 1966 como estudante, visita pela primeira vez Salvador, na época da II Bienal da Bahia. Em 1970 passa a residir em Salvador e em 1971 transfere-se da UFRJ para a Universidade Federal da Bahia. A sua produção como artista profissional (em artes visuais e em artes cênicas) inicia-se no ano de 1973, com dois eventos: a primeira exposição individual, realizada no Instituto Cultural Brasil Alemanha, em Salvador, com desenhos e gravuras, onde transpõe imagens dos seus poemas para o claro-escuro do bico de pena e da água forte e explora a temática dos transportes urbanos; e, nas Artes Cênicas, como atriz, cenógrafa e figurinista do espetáculo Abraão e Isaque , direção de Carlos Petrovich, com temporada na Capela do Solar do Unhão, em Salvador. Gradua-se pela Escola de Belas Artes da UFBA em 1974 em Licenciatura em Desenho e Plástica. É professora da Escola de Belas Artes e da Escola de Teatro da UFBA desde 1980. Mestre em Artes Visuais em 1995, também pela UFBA. Interagindo com a poesia, as artes cênicas e as artes plásticas, a investigação atual se desdobra em projetos artísticos decorrentes da tese de doutoramento, concluída e aprovada com distinção em 2002, no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Escola de Dança e Escola de Teatro da UFBA. A partir do estudo sobre Imagem, Imaginário e Processos de Criação a artista produz como resultado concepções para várias formas e formatos, que podem funcionar como obras independentes ou interagir num mesmo fluxo como Espetáculo-Exposição, trajeto entre poemas, visualidade e teatralidade. Além de vários artigos, publicou dois livros de poemas e imagens, sendo, o mais recente, CasaTempo, (Salvador: Solisluna, 2005), um dos produtos da sua pesquisa atual. É membro da ABRACE, Associação Brasileira de Pesquisadores em Artes Cênicas.






Textura da Morte


Não
A morte não é só
Esse morcego e esse rato
Que insistem dentro do quarto

Tão estranha a morte
                  
Ela é uma flor
E toda essa memória amarga
Que foi de uma criança
E ela é cada gole e cada passo e cada beijo


***




Corpus


Corpo
Jardim-aquário
Cela-cavalo
Cidade ausência
Peixe-balão

Corpo-tempo

Duplo-morto

Andarilho-corpo

Catedral-oração


***


A Igreja

Eu era criança
A igreja era pontuda
E penetrou em mim
Como uma faca penetra numa carne
E não sai

Algumas vezes dói
Algumas vezes sangra
Eu não consigo chorar
Mas a assombração de Deus
Sentada na porta

Chora

FRANCISCO CARVALHO (1927-2013)

Francisco Carvalho é filho de Clicério Leite de Carvalho e Maria Helena de Carvalho. Nasceu em Russas, Ceará próximo a Santa Cruz do Borges. Fez os estudos primários para mais tarde ingressar no Ateneu São Bernardo, em Russas onde publicou seus primeiros versos numa pequena tipografia. Permaneceu em Russas até 1939, ano em que seu pai veio a falecer após longos seis meses de agonia, fato este que marcaria por toda a vida a memória do poeta. Foi então para a cidade de Fortaleza,capital do Estado do Ceará, levando a família. Ali fixou-se ingressando como profissional de carreira da Universidade Federal do Ceará. Fez parte da vida intelectual de Fortaleza participando de movimentos literários e mantendo relações de amizade com os principais escritores de seu tempo. Em 1996 sua obra Raízes da Voz seria escolhida para leitura do vestibular daquele ano. Em 2004 o cantor e compositor cearense Raimundo Fagner lançou o álbum Donos do Brasil com as seguintes composições de Carvalho: O Bicho Homem, Esse Touro Vale Ouro, Cesta Básica, Reino/Minueto da Porta. Em 2009, foi concedido o Prêmio Francisco Carvalho de Poesia, com uma pequena publicação, na ocasião do evento anual XI Encontro Cultural Russano. Em 2012, aos 85 anos, o poeta teve parte de sua obra poética traduzida para o búlgaro. Francisco morreu em 4 de março de 2013, por volta das 23h30. A causa da morte do escritor foi falência múltipla dos órgãos.







VERDADE


Minha verdade é um punhado
de sonhos extraviados.

minha verdade são os mortos
que pelejam contra mim.

são as palavras e a marca
do seu reflexo no espelho.

minha verdade é este sangue
da noite desmoronada.

minha verdade é a memória
do meu remorso bastardo.

minha verdade é a incerteza
do tempo que nos rumina.

minha verdade é esta insônia
que me atravessa a retina

como uma flecha de areia
que abrisse a carne da rima.

minha verdade é esta negra
ronda do corpo e da alma

este saber que me iludo
e este cansaço de tudo.


***




SONETO À RENDEIRA


O linho é uma oração remota, nesse
fluir fabril de fio para a flor.
Move-se o coração da moça, e esquece
o tempo prisioneiro, em derredor

da sombra esguia que à almofada tece.
Move-se, em seu afã modelador
de paz, o mito imemorial da prece
que do limbo da morte inventa o amor.

Movem-se dentro dela o sol e o vento.
Move-se o mar, e os pórticos se movem
das águas em perpétuo movimento...

Move-se a gênese em seu corpo jovem.
E, enquanto o olhar medita, os dedos tecem
gestos de amor que os lábios não conhecem.

***


CALAFRIO


O amor
é um calafrio
que nos percorre
o corpo
e deságua
na foz
de um secreto rio.



segunda-feira, 11 de março de 2013

BEATRIZ BRANDÃO (1779 - 1868)




Beatriz Francisca de Assis Brandão nasceu na cidade de Vila Rica, então capital da província de Minas Gerais, atual Ouro Preto, a 29 de julho de 1779. Filha do sargento-mor Francisco Sanches Brandão e de Isabel Feliciana Narcisa de Seixas. Dedicou-se à poesia, à prosa e à tradução, assinando-se apenas com o prenome à guisa de pseudônimo, D. Beatriz, no período em que colaborava para a Marmota Fluminense. Depois de publicar seus versos no Parnaso brasileiro, os reúne em volume sob o título de Cantos da mocidade, em 1856. A segunda obra publicada foi Carta de Leandro a Hero, e Carta de Hero a Leandro, também no Parnaso brasileiro. Em 28 abril de 1868, já bastante conhecida, mereceu um artigo, no Correio Mercantil, intitulado "Prima de Marília", onde se lê que "D. Beatriz era um ânimo varonil e uma inspirada poetisa." D. Beatriz dedicou-se também ao ensino. Dirigiu em Vila Rica um educandário para meninas. E participou da nossa imprensa, tendo publicado no Guanabara e na Marmota Fluminense, de 1852 a 1857. Faleceu no Rio de Janeiro a 5 de fevereiro de 1868. É a patrona da cadeira n° 38 da Academia Mineira de Letras e pertenceu à Sociedade Promotora da Instituição Pública da Cidade de Ouro Preto









SONETO
 
Voa, suspiro meu, vai diligente,
Busca os Lares ditosos onde mora
O terno objeto, que minha alma adora,
Por quem tanta aflição meu peito sente.

Ao meu bem te avizinha docemente;
Não perturbes seu sono: nesta hora,
Em que a Amante fiel saudosa chora,
Durma talvez pacífico e contente.

Com os ares, que respira, te mistura;
Seu coração penetra; nele inspira
Sonhos de amor, imagens de ternura.

Apresenta-lhe a Amante, que delira;
Em seu cândido peito amor procura;
Vê se também por mim terno suspira. 


***



SONETO

Meu coração palpita acelerado,
Exulta de prazer, de amor delira,
Novo alento meu peito já respira,
É mil vezes feliz o meu cuidado.

O meu Tirce de mim vive lembrado,
Saudoso, como eu, por mim suspira;
Que seleto prazer a esta alma inspira
A amorosa expressão do bem amado!

Doce prenda dos meus ternos amores,
Amada, suavíssima escritura,
Que em meu peito desterras vãos temores;

Em ígneos caracteres na alma pura
Grava, Amor, com os farpões abrasadores
Estes doces penhores da ternura.
 

***




SONETO

Que tens, meu coração? Porque ansioso
Te sinto palpitar continuamente?
Ora te abrasas em desejo ardente,
Outra hora gelas triste e duvidoso?

Uma vez te abalanças valeroso
A suportar da ausência o mal veemente;
Mas logo esmorecido, descontente,
Abandonas o passo perigoso?

Meu terno coração, ela, resiste,
Não desmaies, não tremas; pode um dia
Inda o Fado mudar o tempo triste.

Suporta da saudade a tirania,
Que ainda verás feliz, como já viste,
Raiar a linda face da alegria.

ADRIANA VERSIANI DOS ANJOS (1963 - )




Adriana Versiani dos Anjos nasceu em Ouro Preto, Minas Gerais. Tem cinco livros de poemas publicados, dentre eles, A Física dos Beatles (2005), Conto dos Dias (2007), o virtual Explicação do Fato (2008 – Germina literatura – Revista Virtual) e Livro de Papel (2009) Integrou o Grupo Dazibao de Divinópolis/Belo Horizonte. Foi co-organizadora da Coleção Poesia Orbital e do Jornal Inferno. É editora do Jornal DEZFACES. Faz parte do conselho editorial da Revista de Literatura Ato.





Compulsão

Mastigou duas ou três folhinhas logo que acordou e escreveu:
Escreveu as trincas das xícaras.
Escreveu as tábuas corridas estufadas pelo tempo (tanta chuva, tanto sol).
Escreveu as histórias que lhe contaram os bons fantasmas, para sempre
bebendo vinho na varanda.
Com eles anotou o movimento das constelações e desejou a dor profunda
que o reconduziria ao amor perdido no século retrasado.
Escreveu esse amor, a carne inexistente, a dureza dos seus ossos.
No quintal, escreveu o sabor doce do coração do cordeiro. Escreveu isso
com o pedaço de carvão que lhe entregaram os piratas ingleses.
Rolou em êxtase pelo jardim de maçãs, desprovido de vestes,
sentindo ohálito do vento,
massageando-se nas sílabas.
Escreveu isso na alma de vidro com a ponta do diamante.
Fez um círculo de fogo na clareira daquele bosque.
Escreveu a fome que viu na cidade secreta e o beija-flor agonizando no vaso do jardim.

Pobre beija-flor!

Acordou com um gosto de menta na boca e escreveu.

Tudo mentira.


***


Código

Perdoe-me por não saber amar em outra língua.
estes versos, que me atravessam como uma rua acidentada, não os explicito.

perdoe-me por não saber cantar em outra língua.
estes versos, que me iluminam como as pedras que flatam na rua
acidentada, não os traduzo.

perdoe-me por não saber beijar em outra língua.

estes versos que se soltam e me encharcam.


***



Aprendizado ou a viagem ao centro da terra
[Transalucinação de trechos da prosa de Alejandra Pizarnik]


A. pegou o pote onde estava escrito:
“Beba-me e verás coisas cujo nome não sonha o silêncio”.
A linguagem é um vácuo onde nenhum objeto parece ter sido tocado por mãos humanas.
Falo com a voz atrás da voz e com os mágicos sons da língua encantada.
Embriaga-me a luz que transforma minhas palavras em um esplêndido castelo de papel.
Permito-me visões e figuras pressentidas segundo os temores e os desejos do momento.
Sobrevoa-me a morte. Busco a saída.
Volto a mim e vejo uma dor que não acaba.
Luz estranha a todos nós. Em mim, tudo se diz com sua sombra.
Azul é meu nome.
Sou capaz de morrer por uma palavra mal pronunciada.
Os sofrimentos me dispensam de dar explicações.
Já não significa para mim a língua que herdei dos estrangeiros.
Sei bem que minha ferida não deixará de coincidir com a de alguma “supliciada”, que um dia me lerá com fervor por eu ter deixado de dizer que não tinha nada a dizer.
Eu falo a partir de mim.
Para sempre em meu ombro direito dois êxtases poéticos.