segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

ALOÍSIO RESENDE (1900-1941)





Nascido em Feira de Santana, no dia 26 de outubro de 1900, Aloísio Resende, também conhecido como Zinho Faúla, era de origem humilde e, como tantos outros afro-descendentes daqueles tempos, não desfrutou integralmente de uma educação formal, encontrando no jornalismo o ambiente propício à expansão de seu talento de homem de letras. Autodidata, na juventude residiu primeiro em Recife, onde deu seus passos iniciais no mundo da imprensa. Em seguida, passou a residir em Salvador, sendo admitido no jornal A Hora. Retorna a Feira de Santana nos anos 30 e ingressa na Folha do Norte, órgão ao qual se vincula até 1941, data de seu precoce falecimento. Enquanto viveu, Resende não logrou
ver seus poemas editados em livro, tendo publicado apenas na imprensa, sobretudo no período compreendido entre 1928 e 1940. Este fato dá, por vezes, a sua produção trás certo tom de crônica da vida popular e sertaneja, na medida em que se volta para o enfoque de temas cotidianos como o cangaço e as manifestações religiosas afro-brasileiras. Tal limitação restringiu a recepção de sua obra em função da própria natureza do jornal, nas palavras de Antonio Cândido, “publicação efêmera que se compra num dia e no dia seguinte é usada para embrulhar um par de sapatos ou forrar o chão da cozinha”. Ao lado disso, a imagem de boêmio – construtor de sonetos, ao mesmo tempo em que homem do povo empenhado em cantar o candomblé e a herança dos ancestrais – fez de Aloísio Resende um autor controvertido e relegado ao esquecimento. Em 1979, os pesquisadores Antônio Lopes e Alberto Boaventura Alves publicam em Feira de Santana uma recolha de textos intitulada Poesias de Aloysio Resende. A obra possui valor histórico por iniciar o processo de resgate e de divulgação do autor entre as novas gerações, mas trata-se de edição de pequeno porte e, ao que tudo indica, esgotada. No ano 2000, outro conjunto de poemas de Aloísio Resende foi editado em livro por Ana Angélica Moraes, Cristiane Porto e Lucidalva Assunção, pesquisadoras da Universidade Estadual de Feira de Santana. Aloísio Resende: poemas contém ensaios críticos e um dossiê com dados biobibliográficos, depoimentos sobre o autor, reproduções de documentos pessoais e de material jornalístico. Somente a partir desses registros, sua poesia multifacetada, nutrida ainda por um parnasianismo tardio, embora sem esquecer os temas populares caros ao localismo modernista, adquire maior circulação.







FLOR DE CARNE

Pairava na tua alcova o excêntrico perfume
envolto do teu corpo airoso de serpente;
ansiosa a me fitar com teus olhos de nume,
expunhas-me, ofegante, à tua boca ardente.

E louca e desgrenhada e trêmula e nervosa,
vinhas toda a sorrir para a glória do amor.
Eras, de fato, assim, mais lúbrica e formosa
na suprema nudez da tua carne em flor.

Da pálida lua etérea, a claridade morna
banhava docemente a concha do teu leito;
e, na luz desse luar, que a tua graça exorna,
teu frágil corpo esbelto em meus braços estreito.

Treme-te a carne forte, indomável e erótica,
nos espasmos do amor a que te entregas, louca,
e te enroscas, lasciva e excitante e nevrótica,
a mim, que sorvo ansioso o mel da tua boca.

Quando, convulso e mudo, esse teu corpo langue
era o desejo cruel de todo o meu desejo,
e teu lábio febril era uma flor de sangue
aberta para o gozo imenso do meu beijo.

Tontos de amor, enfim, na sensação extrema
da carne a se estorcer em prolongado abraço,
na volúpia sem par da volúpia suprema,
mais insano e brutal te aconchego e te enlaço.

Tu, sensual e dengosa, em coleios terríveis,
do teu lábio ofertando os íntimos venenos;
eu, sequioso, apertando em minhas mãos sensíveis
os agudos punhais dos teus seios morenos.

Um gemido, um suspiro agora então se evola
do teu peito, afinal, oprimido e arquejante,
no recinto da alcova, onde vencido rola
teu corpo a se exaurir no leito extortegante.

Hoje é tudo o que resta de meu viver aflito
em que de um bronco ser estranho me assemelho:
a lembrança infeliz de teu cheiro esquisito,
no sabor infernal de teu beijo vermelho.



***





PEGI-GAN

Sob o céu a luzir, Misael abre o peito
forte e clara vibrando a  voz de agô-lô-nan.
Salva o terreiro amigo o moço pegi-ga,
Num dialeto africano esquisito e perfeito.

Nas rodas da macumba, até agora está só,
crioulo bom no tocar, crioulo bom no cantar.
Coração de mulher tu sabes amarrar,
crioulo de fato e lei, nos mistérios do ebó.

Calça branca e lustrosa e camisa de lista,
da garganta de bronze a voz potente rola,
saudando os orixás, em linguagem de Angola,
no barracão não há cabrocha que resista.

Já fizeste uma vez, vaidosa orixafi,
tu que gostas de sangue e que trazes mocan,
e que pisas em brasa e louvor de Iansã,
de feitiço morrer doida de amor por ti.

Dentro da noite branca a tua voz maltrata
e fere o peito de alguém que de ti afeiçoa,
crioulo mal do dendê, teu canto além ressoa,
para orgulho talvez da faceira mulata.

Tu pareces até que tens parte com Exu,
negro da tentação, negro bom de verdade,
vais deixar ao partir, um pouco de saudade,
nessa terra ideal de Nanan-burucu.


***





O CANGACEIRO




Pelos ínvios sertões, ao sol que adusto abrasa
a inóspita caatinga, em que se acoita, ao certo,
tala de agreste inculto à vargem plana e rasa,
sutil o passo lesto e o ouvido ao vento esperto.

Ao mais brando rumor de ramo seco ou de asa
cortando o espaço, esbarra. Em torno o olhar incerto
busca. E se amoita. E o rifle, ao rosto, e o peito, em brasa,
de um bruto choque aguarda o início que vem perto.

Findo e fero fragor da férvida façanha,
no rancho, entre grotões, consigo a sós medita,
ao fluido luar que surge e a selva inteira banha.

Trigueiro, o ferro à cinta, o lenço à gorja preso,
recorda o rude ataque à vila onde palpita,
por ele, um coração doido de amor por ele.
 

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