segunda-feira, 14 de julho de 2014

CARLA ANDRADE BONIFÁCIO GOMES (1977 - )

Mineira de Belo Horizonte, Carla Andrade Bonifácio Gomes mora em Brasília. Jornalista de formação, Lançou este ano seu livro de estréia, Conjugação de Pingos de Chuva. A poesia de Carla Andrade é fortemente marcada por traços de surrealismo. Escreve Adalberto Müller no prefácio de Conjugação de Pingos de Chuva: "Seus poemas raramente estão preocupados com um lastro de realidade, parecem estar muito mais submissos a uma vertiginosa — e difícil — sedução da imagem". Alguns de seus poemas foram premiados em concursos em Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. O caderno Pensar do jornal Correio Braziliense já publicou seis de suas poesias.





SEIS E MEIA


Greve de lírios
vi no seu olhar
saíram todos

no céu,
nuvens pasmas
foram incendiar.

***




SALTIMBANCOS


A vida é só um picadeiro de circo
Quando notamos...

Foram-se as lâminas certeiras
dos atiradores ciganos
restaram véus de purpurinas.

Apenas as lembranças rodopiam.
Ecoam em algum lugar aqui dentro
como cambalhotas sapecas.

***



Cateto oposto


O oval de mim
é  pulso na manhã,
língua no lamber do mar,
cabelos soltos em afã
nos obesos dedos do ar.

 O mim no aval do mundo:

 geometria das cores
de um pássaro, descora;
pó verde de homens
de suor, desbota.

Decora
ossos do calcanhar
de quem no oval
             do tempo, pisa em mim.

O mim, no que ainda resta
de oval no mundo, é quadrado,
olhos fundos de vigas,
dentes podres em filas.

Estilhaço, mais um dia.
No oval redondo da vida,
tantas covas na hipocrisia,
bichos mortos de sonhos.



LUIZ BACELLAR (1928-2012)

 Luiz Bacellar é um dos escritores mais significativos da literatura que se produz no Amazonas. Nascido em Manaus, no dia 4 de setembro de 1928, o poeta viveu sua infância numa época marcada pela crise econômica que se seguiu ao fausto do "ciclo da borracha". Sua obra é perpassada por elementos de forte componente erudito, ao mesmo tempo em que retrata temas e motivos da cultura popular, do folclore, em particular as vivências de sua infância no bairro dos Tocos, hoje Aparecida. O universo poético retratado por Bacellar, sobretudo em Frauta de Barro, constrói-se sobre o plano da memória. Tece seus versos com os fios das lembranças, reminiscências de seu mundo infantil. Constrói um mapa esmaecido de uma cidade corroída pelo tempo e pelas transformações econômicas – Manaus. Não a que conhecemos hoje, surgida sob as determinações da Zona Franca, mas a Manaus provinciana da segunda metade do século que se encerra. Estudou no Colégio São Bento, em São Paulo, onde completou seus estudos. Aperfeiçoando-se posteriormente, no Rio de Janeiro, em Pesquisa Social, Antropologia e Museologia, realizando parte de seus estudos sob a orientação do saudoso professor e estudioso da cultura brasileira Darcy Ribeiro. A música é outro componente importante de sua produção poética. Parte significativa de seus textos são plasmados por intensa musicalidade. Foi professor de Literatura e Língua Portuguesa no Colégio Estadual D. Pedro II, pólo aglutinador, nos anos 50 e 60, da jovem intelectualidade de Manaus. Destacou-se no processo de renovação da literatura regional, participando da movimentação que culminou na fundação do Clube da Madrugada, em 1954. Exerceu o jornalismo, atuando em diversos órgão de comunicação de Manaus. No plano institucional, foi conselheiro de cultura do Estado do Amazonas em diversas oportunidades. A vida literária do poeta Luiz Bacellar teve um começo feliz: conquistou, em 1959, o prêmio "Olavo Bilac", da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, com aquele que seria seu livro de estréia, Frauta de barro, publicado em 1963.







Noturno da rampa do mercado


As luzes das barcaças sonham ventos
quando em águas propícias e serenas
no cansado ancorar brilham pequenas
em almos lucilares cismarentos ...

O rio e a noite expandem seus lamentos
e os mastros tristes são candeias plenas
de oleosas saudades e de penas
sirgando macilentos barlaventos ...

As águas encrespadas pela brisa
gravam na praia úmida do pranto
 das órfãs de afogados o seu canto.

Gregoriano canto, que, em precisa
cadência, vai ecoando em cada peito:
deixai-nos descansar: tudo está feito.  

***


VERÃO

No livre azul o sossegado vento
lívido sonha linhas de escultura
que moldara nas nuvens no momento
de apascentá-las pela tarde pura.

Num arrepio de pressentimento
o ruflo de asa risca na brancura,
o sol arranca brilhos do cimento
do muro novo, a folha cai. Madura.

Tudo o verão proclama. A tarde limpa,
esmaltada de claro; pela grimpa
do morro verde a cabra lenta vai...

A luz resvala na amplidão sonora.
Por que senti rogar-me a face agora
um beijo, um frêmito, um suspiro, um ai?


***


Soneto do canivete

Do gume aceso se cumpra
o destino de ser-quilha
e o destino de ser peixe
no ímpeto da mola oculta;

do cabo córneo se cumpra
o destino de ser concha
bivalve guardando a folha:
molusco vidrado e alerta.

Cumpra-se o ávido destino
de esfolar laranjas vivas
e fazer lascas de pinho

na timidez corrosiva
dentro do punho incrustada
da lâmina envergonhada





ZILA MAMEDE (1928-1985)


Nasceu na Paraíba, mas está mais ligada às letras e à cultura do Rio Grande do Norte, onde viveu a maior parte de sua vida e onde o mar a levou para sempre. O poema Elegia, incluído na presente seleção, é como um prenúncio de seu destino.  Formada em biblioteconomia, tendo exercido cargos de importância no Instituto Nacional do Livro (em Brasília) e como diretora da Biblioteca Central da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Seus principais livros: Rosa de Pedra (1953), Salinas (1958), O Arado (1959), Exercício da Palavra (1975), A Herança (1984) e Navegos (Poesia reunida 1953-1978).  Poeta sutil, elegante, de um lirismo contido e introvertido, de solidão e paixão mas também, não raras vezes, com um fundo social relativo às temáticas do sertão nordestino. Drummond tinha-a entre suas predileções.





BILHAR 
       a Ludi e Oswaldo Lamartine


Na medida exata
em que a noite corre
não fico: me ausento
como quem morre

Entre lousa e livro
- único disfarce
que concedo ao tempo =
mudo-me a face

que, no entanto, vária,
inábil, reprimida,
perde-se no encontro
tátil da vida

Bola sete em rude
pano de bilhar
marco meu sem rumo
jogo-de-amar.


***




A PONTE

Salto esculpido
sobre o vão
do espaço
em chão
de pedra e de aço
onde não
permaneço
                   - passo.


***




Rua (TRAIRI)


Nos cubos desse sal que me encarcera
(Pedras, silêncios, picaretas, luas,
anoitecidos braços na paisagem)
a duna antiga faz-se pavimento.

Meu chão se muda em novos alicerces,
sob as pedreiras rasgam-se meus passos;
 e a velha grama (pasto de lirismos)
afoga-se nos sulcos das enxadas,

nas ânsias do caminho vertical.
Ao sono das areias abandonam-
se nesta rua vívidos fantasmas

De seus rios meninos que descalços
apascentavam lamas e enxurradas.
Meu chão de agora: a rua está calçada.