terça-feira, 2 de setembro de 2014

GREGÓRIO DE MATTOS (1633/1696),

 
Gregório de Mattos e Guerra, o “Boca do Inferno”, nascido na Bahia, foi o primeiro de nossos satíricos, e, quiçá, nosso primeiro grande poeta de facto. Homem de língua destravada e fácil veia poética. Estudou humanidades em Portugal, tendo feito o curso de leis na Universidade de Coimbra. Na terra mãe foi juiz criminal e de órfãos. Voltou ao Brasil com 47 anos, sob a proteção do arcebispo da Bahia, D. Gaspar Barata. Tantas e tais fez que não só perdeu a proteção do prelado, como ainda foi degredado para Angola. Reabilitado, voltou ao Brasil, indo para Recife, onde conquistou simpatias e viveu com menos turbulência que na Bahia. É o patrono da cadeira n.º 16 da Academia Brasileira de Letras. Além de versos satíricos e humorísticos, escreveu poesias eróticas com a maior incontinência verbal.




EPIGRAMA


Juízo anatômico dos achaques que padecia o corpo da República em todos os membros, e inteira definição do que em todos os tempos é a Bahia.





Que falta nesta cidade?... Verdade.
Que mais por sua desonra?... Honra.
Falta mais que se lhe ponha?... Vergonha.

O demo a viver se exponha,
Por mais que a fama a exalta,
Numa cidade onde falta
Verdade, honra, vergonha.

Quem a pôs neste rocrócio?... Negócio.
Quem causa tal perdição?... Ambição.
E no meio desta loucura?... Usura.

Notável desaventura
De um povo néscio e sandeu,
Que não sabe que perdeu
Negócio, ambição, usura.

Quais são seus doces objetos?... Pretos.
Tem outros bens mais maciços?... Mestiços.
Quais destes lhe são mais gratos?... Mulatos.

Dou ao Demo os insensatos,
Dou ao Demo o povo asnal,
Que estima por cabedal,
Pretos, mestiços, mulatos.

Quem faz os círios mesquinhos?... Meirinhos.
Quem faz as farinhas tardas?... Guardas.
Quem as tem nos aposentos?... Sargentos.

Os círios lá vem aos centos,
E a terra fica esfaimando,
Porque os vão atravessando
Meirinhos, guardas, sargentos.

E que justiça a resguarda?... Bastarda.
É grátis distribuída?... Vendida.
Que tem, que a todos assusta?... Injusta.

Valha-nos Deus, o que custa
O que El-Rei nos dá de graça.
Que anda a Justiça na praça
Bastarda, vendida, injusta.

Que vai pela clerezia?... Simonia.
E pelos membros da Igreja?... Inveja.
Cuidei que mais se lhe punha?... Unha

Sazonada caramunha,
Enfim, que na Santa Sé
O que mais se pratica é
Simonia, inveja e unha.

E nos frades há manqueiras?... Freiras.
Em que ocupam os serões?... Sermões.
Não se ocupam em disputas?... Putas.

Com palavras dissolutas
Me concluo na verdade,
Que as lidas todas de um frade
São freiras, sermões e putas.

O açúcar já acabou?... Baixou.
E o dinheiro se extinguiu?... Subiu.
Logo já convalesceu?... Morreu.

À Bahia aconteceu
O que a um doente acontece:
Cai na cama, e o mal cresce,
Baixou, subiu, morreu.

A Câmara não acode?... Não pode.
Pois não tem todo o poder?... Não quer.
É que o Governo a convence?... Não vence.

Quem haverá que tal pense,
Que uma câmara tão nobre,
Por ver-se mísera e pobre,
Não pode, não quer, não vence.


***

À D. Ângela


Anjo no nome, Angélica na cara
Isso é ser flor, e Anjo juntamente
Ser Angélica flor, e Anjo florente
Em quem, se não em vós se uniformara?

Quem veria uma flor, que a não cortara
De verde pé, de rama florescente?
E quem um Anjo vira tão luzente
Que por seu Deus, o não idolatrara?

Se como Anjo sois dos meus altares
Fôreis o meu custódio, e minha guarda
Livrara eu de diabólicos azares.

Mas vejo, que tão bela, e tão galharda
Posto que os Anjos nunca dão pesares
Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda. 



***




Buscando a Cristo


A vós correndo vou, braços sagrados,
Nessa cruz sacrossanta descobertos
Que, para receber-me, estais abertos,
E, por não castigar-me, estais cravados.

A vós, divinos olhos, eclipsados
De tanto sangue e lágrimas abertos,
Pois, para perdoar-me, estais despertos,
E, por não condenar-me, estais fechados.

A vós, pregados pés, por não deixar-me,
A vós, sangue vertido, para ungir-me,
A vós, cabeça baixa, p'ra chamar-me

A vós, lado patente, quero unir-me,
A vós, cravos preciosos, quero atar-me,

Para ficar unido, atado e firme.

EURICO ALVES BOAVENTURA (1909-1974)

 
Eurico Alves Boaventura, poeta, cronista e ensaísta, nasceu em Feira de Santana, em 21 de julho de 1909. Foi um dos principais nomes do grupo modernista baiano surgido em torno da revista Arco & Flexa e um dos maiores expoentes de uma literatura modernista ainda muito desconhecida do grande público. Colaborou em vários periódicos de Salvador e do Nordeste. Deixou muitos textos inéditos, alguns deles publicados postumamente como Fidalgos e Vaqueiros (Universidade Federal da Bahia, 1989) e Poesias (Fundação Cultural do Estado da Bahia (1991)). Sua obra singular é marcada por um verso livre incisivo e seus temas variam do urbanismo típico das primeiras gerações de modernistas do Brasil ao gosto requintado e autêntico de um regionalismo que lhe era demasiadamente peculiar. Na simplicidade dos versos de Eurico Alves Boaventura é possível perceber um dos elementos próprios da cultura de Feira de Santana - a figura do vaqueiro. Na lírica nostálgica do poeta, infância e natureza estão interligadas, quando canta as peripécias do menino sertanejo. Um dos momentos mais sublimes da história do poeta é o diálogo que trava com o poeta pernambucano Manuel Bandeira, registrado no poema Escusa, pertencente ao livro Belo Belo, de bandeira.






DÍNAMO


Ralam o ar, rodopiando em roucos ronrons rudos,
as ruivas, rúbidas rodas raivosas, rápidas, ao fogaréu ...

Negras fauces monstros de fornalhas, abocanhando as sombras,
num doido torvelinho desordenadamente bruto,
de permeio às turbinas, aos êmbolos, às válvulas e a loucura
de mil garras de fogo — as alavancas víboras —
no vai-e-vem, vem-e-volta,
subindo, descendo, afogando-se na fofa negrura do óleo chiando ...

Tatala, lá fora, ao dorso polido das chaminés,
a crespa asa rascante e do grande morcego chagado
a noite.

Correm escuros arrepios no alto céu de ferrugem,
mordendo a usina ...

Mas, a um canto, possante, brutal, estouvadamente,
entre o delírio de carótidas veias e artérias de aço,
bates, rebates, fremes, latejas, precípite,
em cólera chispando,
rudo, rouco, raivoso, rasgando a noite,
— dínamo da fábrica — meu desvairado coração pulsando!

***




BALADA DA ESPERANÇA CANTADA NA CASA GRANDE


Herdei de meu pai este solar antigo ...

Sob a sua sombra, as horas se aconchegam religiosamente, ciciando preces,

ciciando preces que eu só escuto e compreendo,
e a vida pousa nua no meu pensamento ...

É pura a hora, sem desejos inúteis, sem calor de sexo
que o sol nos dá ...

Bate, dentro do luar, a cancela, bate mansamente,
ressonância de coração que envelhece na paisagem sem rancor.
Bate ao sol, bate ao luar, nos nervos crespos do mourão de baraúna, melodia de saudade, recuando até nós ...

Não haverá outros gemidos lá fora abafando a música da minha alegria.

Quando poderei sonhar no solar herdado de meu Pai?



***



ELEGIA PARA MANUEL BANDEIRA



Estou tão longe da terra e tão perto do céu,
quando venho de subir esta serra tão alta ...

Serra de São José das ltapororocas, afogada no céu, quando a noite se despe
e crucificado no sol se o dia gargalha.
Estou no recanto da terra onde as mãos de mil virgens tecem céus de corolas para o meu acalanto.
Perdi completamente a melancolia da cidade e não tenho tristeza nos olhos
e espalho vibrações da minha força na paisagem.
Os bois escavam o chão para sentir o aroma da terra,
e é como se arranhassem um seio verde, moreno.
Manuel Bandeira, a súbida da serra é um plágio da vida.

Poeta, me dê esta mão tão magra acostumada a bater nas teclas
da desumanizada máquina fria e venha ver a vida da paisagem
onde o sol faz cócegas nos pulmões que passam
e enche a alma de gritos da madrugada.
 
Não desprezo os montes escalvados
tal o meu romântico homônimo de Guerra Junqueiro
Bebo leite aromático do candeial em flor
e sorvo a volúpia da manhã na cavalgada.
Visto os couros do vaqueiroe na corrida do cavalo sinto o chão pequeno para a galopada.
Aqui come-se carne cheia de sangue, cheirando a sol.
Que poeta nada! Sou vaqueiro.

Manuel Bandeira, todo tabaréu traz a manhã nascendo nos olhos
e sabe de um grito atemorizar o sol.

Feira de Santana! Alegria!

Alegria nas estradas,
que são convites para a vida na vaquejada,
alegria nos currais de cheiro sadio, alegria masculina das vaquejadas,
que levam para a vida e arrastam também para a morte!
Alegria de ser bruto e ter terra nas mãos selvagens!
Que lindo poema cor de mel esta alvorada!
A manhã veio deitar-se sobre o sempre verde.
Manuel Bandeira, dê um pulo a Feira de Santana e venha comer pirão de leite com carne assada de volta do curral
Venha sentir o perfume de eternidade que há nestas casas de fazenda,
nestes solares que os séculos escondem nos cabelos desnastrados das noites eternas venha ver como o céu aqui é céu de verdade
e o tabaréu como até se parece com Nosso Senhor.


PATRICE DE MORAES (1968 - )

João Patrice Machado de Moraes (1968-    ), baiano, natural de Conceição do Jacuípe (Berimbau), é professor formado pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Sua primeira incursão pela literatura se deu em 1997, quando participou de uma coletânea denominada Reviravolta, Versos e Textos.  Neste mesmo ano participa do Concurso Nacional de Poesia e Prosa Castro Alves promovido pelo CEPA (Círculo de Estudo, Pensamento e Ação), Salvador, tendo recebido certificado de menção honrosa.  A poesia de Patrice de Moraes é uma poesia que sempre se quer cinética, que pretende romper os limites da impressão simplória e alçar à consubstanciação da mais pura e didática alegoria, ou seja, uma poesia que substitui o abstrato pelo aparentemente concreto, ou, como melhor definiu Coleridge, citado por César Leal em seu Os cavaleiros de Júpiter, uma “transposição de noções abstratas para uma linguagem de cores”.  Assim, cada poema de Patrice faz-se de imagens intencificadoras, dentro de um sistema que permite muito bem a isso; uma imagem representando um conceito ao qual se pretende, ou, simplesmente, comunicar, por meio de imagens puras e gradativas, o despertar dos sentidos, onde certas questões, como a do erotismo, são bem menos um assunto do que uma maneira de metaforizar, como nos dirá Jessé de Almeida Primo: “nesse sentido, sua poesia é tão erótica quanto toda poesia de qualidade deve ser, pouco importando seu assunto”. Mas é, evidentemente, o próprio poeta quem nos dá o melhor exemplo... Já publicou textos no Jornal Noite e Dia e Tribuna Feirense, ambos de Feira de Santana. É autor dos livros: Eurótico (Éros, 2005) e Minha Bahia (Mondrongo, 2013). Seus próximos livros, Amor em Carne Viva (poemas) e Conta-gotas (hai-kais) estão no prelo...






SERVIDÃO



 Não luto contra a carne: eu a respeito.
Não posso lhe negar o seu direito
de realizar-se como ser, sujeito
vivo, por natureza insatisfeito,

regido dia e noite sob o efeito
da libido, veículo eleito
pra dar à carne o físico conceito
de prazer. Quanto mais sinto no peito

convocação da carne para o leito,
mais sou file a ela, mais aceito
servi-la  ― sem mostrar-me contrafeito ―,

afinal no meu sangue flui o preceito
de insaciabilidade  ― que aproveito
até me ver esgotado, rarefeito.

***


MINHA BAHIA


POEMA  XV

 Sofrer..., mas ser da fé um puritano.
Sorrir inda que o sofrimento insista.
São esses os caminhos do otimista,
principalmente quando ele é baiano.

Viver feliz não é nenhum engano.
Sabemos que nem tudo é “terra à vista”!
Mas cada ritmo expressa uma conquista
que faz-nos liberar o lado ufano,

apimentado da baianidade
que nos tornou exemplo de saudade
no coração de quem sente a Bahia.

É o beijo de um amor que se quer ter,
reverenciando-o, e com ele assim viver
um estado em eterno estado de poesia!


***


TEU CHEIRO


 Teu corpo exala um cheiro inconfundível!
Fragmenta-se atrás dele um só desejo
em mil e um cachorros em cortejo
...farejando o intocável no impossível!

Com uma devoção inexaurível
inalo-o como um solo sertanejo
que absorve a santa chuva de sobejo
após anos de seca corrosível.

Teu cheiro para mim é o manifesto
da carne apimentada pelo gesto
do amor quimicamente transformado

...em síntese olfativa de uma luz
que sedutoramente me conduz
a um plano tão profano quão sagrado!