sexta-feira, 8 de maio de 2015

FELIPE D'OLIVEIRA (1891-1933)

Nasceu em Santa Maria da Boca do Monte, Rio Grande do Sul. Com Marcelo Gama, Zeferino Brasil, Álvaro Moreyra, Alceu Wamosy e outros, integrou o grupo simbolista do Rio Grande do Sul (o Simbolismo surge neste Estado em 1902, com via sacra, de Marcelo Gama). Embora tenha dialogando com o Modernismo, Felipe d'Oliveira, segundo Regina Zilberman, "permanece sobretudo um criador simbolista" que dá ênfase "à manifestação de uma temática marcada pela carência de conciliação existencial com a circunstância social e a vida pública, determinando a anulação destas em termos de representação literária". Algumas de suas principais obras poética são Vida extinta (1911) e Lanterna verde (1927).






O salto da morte


A melodia murmura
à porta do rancho
derrama uma alma
na paisagem viva
e a paisagem viva
inspira e expira
o ar fino da noite
pelos brônquios sonoros
da gaita monótona.

Os sapos calaram
e escutam, pensando
que a Mãe-d'Água dos sapos
está cantando perto
no brejo da charneca
entre os nenúfares.

Os bois sonolentos
descerrando lentos
os olhos tímidos
olham o campo longo
batido de luar
e pasmam de já ser
autora pois luz melodiosa
eles entendem o dia só
quando o sol acorda
a voz dos pássaros
adormecidos.

A gaita monótona
insufla um hálito
de pulmão humano
no ar que trescala
na noite clara.

As frondes das árvores
movem o gesto que marca
compasso como cabeças
atentas à orquestra.
As duas janelas ladeando
a porta do rancho
calmo têm a doçura
dos olhos ingênuos
e sorriem no ouro
das candeias que enchem
de ouro fluido
a sala caiada.

E da trepadeira
posta em mantilha
sobre o teto de sapé
sobe o cheiro morno
do jasmim branco
que a música faz
mais tépido
 como um perfume
sobre a pele.

A gaita monótona
alonga o perfume
na noite oblonga
e a claridade unânime
é luar e perfume
dissolvidos na música.

Súbito, um acorde
mais cheio, mais forte,
soprado em ofego
ressoa e se cala
até o fim do espaço,
no fim da paisagem.
Só o luar vazio
persiste sobre
a terra estática...

E, dentro do luar,
pênsil dos astros,
fica oscilando,
compassado,
o silêncio noturno,
como um trapézio
balançado de onde
rolou para morrer
no tombo trágico
o saltimbanco atônito.



***


ENCRUZILHAMENTO DE LINHAS


Núcleo de convergência no bojo da noite oval.
Lanterna Verde
(amêndoa fosforescente
dentro da casca carbonizada)

Longitudinal, centrífugo,
o trem racha em duas metades
a  espessura do escuro
e, cuspindo pela boca da chaminé
as estrelas inúteis à propulsão,
atira-se desenfreado
nos trilhos livres.

Mas se o maquinista fosse daltônico
a locomotiva teria parado.

        
***

 
O Epitáfio que não foi Gravado



Todos sentiram quando a morte entrou
com um frêmito apressado de retardatária.
A que tinha de morrer, — a que a esperava, —
fechou os olhos
fatigados de assistirem ao mal-entendido da vida.

Os que a choravam sabiam-na sem pecado,
consoladora dos aflitos,
boca de perdão e de indulgência,
corpo sem desejo,
voz sem amargor.

A que tinha de morrer fechou os olhos fatigados,
mas tranquilos...
Porque os que a choravam nunca saberiam
o rancor sem perdão de sua boca,
o desejo saciado de seu corpo,
o amargor de sua voz,
a sua angustia de arrastar até o fim a alma postiça que lhe
                                                                  [fizeram,
o seu cansaço imenso de abafar, secretos, na carne ansiosa,
a perfeição e o orgulho de pecar.

A que tinha de morrer fechou os olhos para sempre
e os que a choravam
nunca souberam de alguém que foi de todos junto ao leito
                            [à hora do exausto coração parar
o mais distante,
o mais imóvel,
o que não soluçou
o que não pôde erguer as pálpebras pesadas,
o que sentiu clamar no sangue o desespero de sobreviver,
o que estrangulou na garganta o grito dilacerado do solitário,
o que depós, sobre a serenidade da morte purificadora,
a redenção do silêncio,
como uma pedra votiva de sepulcro.








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